segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Visita a antigas comendas no distrito de Viseu

Passado o flagelo dos fogos que grassou recentemente no distrito de Viseu, no passado fim-de-semana estivemos aí de visita a algumas antigas comendas da Ordem de Malta, nomeadamente, Vila Cova à Coelheira, Sernancelhe e Alcafache. Do nosso roteiro fez ainda parte uma visita à Ermida do Paiva, uma das mais belas, ricas e curiosas igrejas por nós alguma vez visitadas. Embora a historiografia não nos dê certezas sobre a presença da Ordem do Hospital em Ermida do Paiva, que dista apenas 6 Km do centro de Castro Daire, onde a Ordem teve bens e direitos, o certo é que não podemos ignorar as cruzes - ditas de Malta - pintadas no interior daquela igreja, bem como as relações desta com a Ermida de Rodes, sita na freguesia de Reriz deste mesmo concelho de Castro Daire, esta sim com ligações mais estreitas à Ordem dos Cavaleiros do Hospital de São João de Jerusalém, de Rodes e de Malta. Recorde-se ainda que até há bem pouco tempo se mantinha a tradição do pároco de Ermida, ou qualquer presbítero de sua escolha, ir em “procissão a modo de rogação à Capella de N. Senhora de Rodes da freguesia de Reriz, bispado de Viseu”[1]. Alguns estudiosos, no entanto, referem que a influência da Ordem dos Hospitalários no Mosteiro da Ermida parece ser evidente.[2] Ermida do Paiva e Ermida de Rodes, ambas sitas em encostas do rio Paiva, são de fundação relativamente contemporânea. A primeira a rondar o ano de 1145 e atribuída ao ermitão D. Roberto; a segunda a rondar o ano de 1141 e atribuída ao ermitão Leovigildo Peres.
 
«Casais, foros em dinheiro e géneros, “muitas herdades e vinhas” possuíam os freires do Hospital nas terras castrenses. A mais nenhuma outra instituição, a não ser à igreja de Castro Daire e ao Ermitério de D. Roberto, foi aplicada tal expressão. A seguir à Ermida, os Hospitalários eram, sem dúvida, a Ordem que mais implantação tinha por estas bandas.»[3] Das Ordem Militares impunha-se, na diocese de Lamego a de Malta, com as importantes Câmaras magistrais de Sernancelhe e Vila Cova à Coelheira, divididas em diversos ramos como os de Fontelo e de Alvelos, pertencentes à última.[4]
 
De Ermida do Paiva, onde nos detivemos mais demoradamente, seguimos para a antiga comenda magistral de Vila Cova à Coelheira, onde visitamos a pequena povoação e também a povoação de Touro, outrora anexa a Vila Nova à Coelheira, com a qual formou concelho autónomo.
Entrámos na igreja matriz e observámos a antiga Casa da Comenda, que se encontra vazia de pessoas e bens, e o pelourinho e casa brasonada no coração do centro histórico, também parcialmente devoluta. Oxalá que as obras de recuperação que decorrem lá no alto, na capelinha dedicada a Nossa Senhora, e que aí no respectivo adro inscreveram traços da cruz oitavada de malta, cheguem rapidamente àqueles dois edifícios, cuja história se conta a partir da janela manuelina, no primeiro, e a partir do belo brasão colocado na fachada do segundo.
 
De Vila Cova à Coelheira rumamos a Sernancelhe, outrora importantíssima comenda da Ordem de Malta no distrito de Viseu, onde se destaca em pleno coração da vila a antiga Casa da Comenda, hoje convertida em solar de turismo de habitação. A Matriz, no entanto, é o mais significativo edifício da vila. Não podemos deixar de notar as semelhanças dos modilhões desta igreja com os da Ermida do Paiva. Há mesmo modilhões com traço comum, como que se fossem executados pelos mesmos canteiros. A historiografia é consensual em fazer remontar a fundação desta igreja de traço românico ao século XII, mais precisamente ao ano de 1172, data inscrita num silhar da cabeceira. 1124 é, no entanto, a data em que os mais remotos donatários terão atribuído foral  à vila e reconstruído a igreja.
 
Como que a descrever traços da Ermida do Paiva, assim se descreve a matriz de Sernancelhe: traçado românico, genuíno e purificado, presente na singular cachorrada que envolve a capela-mor com uma iconografia obediente aos esquemas do tempo, na cercadura de esferas que percorre as empenas da ábside, nas multiplicadas siglas e na originalidade do pórtico, constituído por três arquivoltas. Singulares são os dois nichos que se abrem de um e outro lado do portal cada um ocupado por três figuras, sob um dossel, tão fortemente impressivas que nos esquecemos a  olhar, a adivinhar o seu mistério, a celebrar a sua missão de apóstolos. No interior destacam-se duas tábuas pintadas pelos meados do século XVI (degolação de S. João Baptista e Anunciação), telas setecentistas, um provável capitel visigótico utilizado como pia de água benta, a presença de pintura a fresco nas faces do arco cruzeiro onde se apresenta Nossa Senhora do Rosário (à direita) e Santa Margarida (à esquerda) datando certamente ainda dos fins dos séculos XIV, quiçá encomenda do abade Gaspar de Soveral que se fez sepultar no túmulo quatrocentista, com belíssima inscrição gótica, em destaque na capela lateral dedicada a Nossa Senhora do Pranto, instituída em 1565.
 
Gaspar de Soveral, foi 6.º Morgado de S. Teotónio de Sernancelhe e, depois que enviuvou de Dona Violante de Carvalho, foi cavaleiro professo da Ordem de Malta, comendador de Sernancelhe e abade da respetiva paróquia. Antes da reforma encetada já na segunda metade do século XX, que substituiu nomeadamente o tecto da capela-mor, aí se podia observar um escudo oval com as Armas dos Soveral sobre a cruz oitavada de Malta, que o próprio Gaspar de Soveral terá mandado pintar. Da mesma época (finais do século XVI) é a pedra de armas (aqui sem a cruz oitavada e com Soveral em pleno, encimado por um coronel de nobreza) que o mesmo também terá mandado colocar na fachada do seu solar de Sernancelhe, que aí ainda hoje existe e tivemos oportunidade de fotografar, ainda que à distância a que obrigam os muros do solar que hoje se encontra devoluto e em acentuado estado de degradação.
 
De Sernancelhe deslocamo-nos à cidade de Viseu e desta à antiga comenda e estância termal de Alcafache, nas margens do rio Dão. Foi concelho medieval com vida administrativa autónoma, sendo, no entanto, tributário do concelho de Azurara, do qual esteve sempre dependente. D. Manuel I outorgou-lhe carta de foral em 6 de Maio de 1514, com referências expressas à condição de terra foreira à Ordem de Malta.
 
De zona termal para zona termal, atravessamos a cidade de Viseu rumo a São Pedro do Sul, onde estanciamos na Quinta da Comenda, que integra uma casa do século XII que terá pertencido à rainha Dona Teresa, cuja propriedade esteve depois ligada à Ordem do Hospital e à importante comenda de Ansemil até 1834. No jardim, o traçado de buxo recorta uma cruz da Ordem de Malta, replicada das existentes no próprio solar e em numerosos elementos da quinta. Aqui demos por findo este nosso périplo por algumas das mais importantes comendas da Ordem no distrito de Viseu.

[1] CARVALHO, Abílio Pereira de, A Ermida do Paiva, pág.16.
[2] Por todos, Abílio Pereira de Carvalho, no seu estudo A Ermida do Paiva.
[3] Idem, ibidem, pág.13.
[4] COSTA, M. Gonçalves da, A História do Bispado e Cidade de Lamego, Volume IV, pág.600.

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